Quem é de esquerda vai dizer que esse texto chegou tarde. Quem é de direita vai dizer que o texto é choro de perdedor (e, claro, vai chamar de fake news). Independentemente do que esses polos acharem, uma coisa é fato e precisa ser relembrada e estudada: as eleições presidenciais brasileiras de 2018 foram definidas pelo aplicativo de celular WhatsApp.
Mudança de foco: do Facebook para o Whatsapp
Até 2017, os marqueteiros políticos brasileiros apostavam suas fichas na maior rede social do mundo: o Facebook. Mal sabiam eles que essa rede passaria por mudanças pesadas na forma como os conteúdos de baixa qualidade são difundidos.
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Com o fiasco das fake news pagas nas eleições norte-americanas de 2016, a opinião pública global se virou contra Zuckerberg, que decidiu recuar na política do "vale-tudo" e instaurar políticas de controle de notícias falsas por meio de checagens de fatos por agências independentes e, também, por meio de algoritmos que controlavam a velocidade de compartilhamentos de conteúdo falso.
E aí, os marqueteiros políticos "mais ligeiros" resolveram mudar seus focos e investir suas energias em outro espaço virtual. Um com muito menos controle de qualidade e, principalmente, com bastante anonimato e impunidade.
Um aplicativo perfeito para as fake news
O WhatsApp é um aplicativo perfeito para a prática da desinformação: além de ter uma comunicação mais rápida e direta que o Facebook, outra "vantagem" do app é permitir o compartilhamento de conteúdo sem rastreamento de sua origem. Ou seja: se alguém resolve inventar uma notícia e espalhar ela por meio de alguns poucos contatos, a transmissão exponencial da rede faz com que essa informação inventada chegue a dezenas de milhares de contatos em apenas um dia... com o anonimato do seu autor.
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Além disso, ao contrário do Facebook, no WhatsApp a informação não fica publicamente exposta na chamada "linha do tempo". Sem essa exposição pública, a informação falsa não corre o risco de ser criticada nos comentários. Sem exposição a críticas, fica ainda mais difícil de se apontar erros e mentiras na informação compartilhada.
Junte uma tecnologia de comunicação como essa, ao mesmo tempo eficiente e sem nenhum controle de qualidade e de autoria, com a gana pela vitória de alguns dos jogadores políticos envolvidos no processo: chegamos no ambiente perfeito para a disseminação de mentiras e desinformação.
Mas... será que é tudo isso mesmo? Para não ficar apenas no que os outros dizem, decidi eu mesmo entrar em um desses grupos de WhatsApp uma semana antes da votação do primeiro turno, para conferir bem de perto como eles funcionam. No geral, observei duas grandes ações articuladas entre seus participantes.
Foto: Pikabay
1ª grande ação dos grupos: produção em massa de notícias falsas
Embora tenham sido criados milhares de grupos de WhatsApp dedicados às campanhas políticas, alguns poucos deles agem como grandes centros de produção de notícias falsas que ecoam para outros grupos menores. Geralmente, são grupos públicos, com dezenas ou centenas de participantes que, geralmente, não se conhecem.
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Ao analisar o grupo que participei, percebi que existem membros especializados em criar notícias falsas (algumas fantasiosas, outras com imagens e vídeos adulterados de maneira profissional). Além desses, também existem os membros que se propõem a gravar áudios e vídeos com depoimentos bastante duvidosos que comprovariam informações das notícias falsas (como, por exemplo, relatos de agressões na rua ou de adulteração em urnas). Por fim, existem aqueles membros que se dispõem a analisar o "cardápio" de conteúdo falso publicado no grupo e a pinçar as notícias falsas mais "críveis" para compartilhá-las em grupos de WhatsApp menores, como os de família ou colegas.
É como se estes grupos trabalhassem em linha de produção industrial, com a segurança da impunidade gerada pela arquitetura de funcionamento do aplicativo.
2ª grande ação dos grupos: atuações coordenadas em jornais no Facebook
Essa ação também é bastante fácil de ser identificada pelos usuários das redes sociais. Consiste em atuar de maneira massiva e coordenada nas notícias publicadas pelas páginas jornalísticas no Facebook.
Funciona assim: quando uma página jornalística publica uma notícia, os membros do grupo que tiverem contato com a publicação tentam identificar o teor daquela notícia em relação ao seu candidato. Então, eles copiam o link da publicação, colam no grupo e, dependendo do teor da notícia, convocam os membros para um tipo de ação coordenada.
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No caso da notícia ser favorável ao candidato, os membros são convocados a acessarem a postagem e a reagirem massivamente de maneira positiva (com curtidas ou corações). Também são convocados a comentarem na notícia com textos positivos (muitas vezes, com comentários previamente produzidos e compartilhados por outros usuários dentro dos grupos de WhatsApp). Por fim, convocavam os membros a curtirem todos os comentários favoráveis ao candidato.
Agora, se a notícia publicada tiver um teor negativo ao candidato, a ordem de atuação é outra: todos são convocados a reagirem de forma negativa na postagem (com reação de raiva ou de risada) e a comentarem com ataques aos veículos de imprensa e aos jornalistas, chamando-os de fake news e insinuando que os jornais estão "desesperados". Mais uma vez, em boa parte dos casos, os comentários negativos são pré-produzidos e compartilhados por outros membros do grupo no WhatsApp, para agilizar a ação.
De forma resumida: quando a notícia é boa, vamos promovê-la e celebrá-la; mas quando a notícia é ruim, vamos alimentar a violenta campanha de descrédito à "grande mídia vendida". E assim, vão criando um ambiente artificial de positividade ao seu candidato e de desconfiança, partidarismo e descrédito aos jornalistas. E dessa forma, vão minando de maneira sorrateira o estado psicológico e a predisposição ao voto dos usuários das redes sociais.
Estamos em um ambiente de desinformação generalizada
A informação é a principal matéria-prima do eleitor. Com as ações de desinformação coordenadas via WhatsApp, esse eleitor vai ficando com cada vez menos matéria-prima para formular as suas decisões eleitorais. Ou, pior: os eleitores passam a utilizar matéria-prima da pior qualidade em seus processos decisórios. Se a matéria-prima é de baixa qualidade, o seu produto também será.
As eleições de 2018 mostraram que os grupos de WhatsApp têm um poder de difusão de sentido muito maior que o da televisão. A prova disso é que os candidatos com mais tempo de TV tiveram resultados minguados. O que poderia ter sido um motivo de esperança (a descentralização do poder de comunicação) acabou sendo um motivo de enorme preocupação: o eficiente poder dos grupos de WhatsApp se combinou com o pior da falsidade, da enganação, da manipulação. O resultado foi um ambiente hostil, tóxico, recheado de informações mentirosas e dissimuladas.
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E o mais triste é que muitas dessas pessoas, levadas pela emoção, sabiam que as publicações geradas nos grupos de WhatsApp não eram nada confiáveis, mas compartilharam mesmo assim.
Alguns meses antes das eleições, o TSE chegou a afirmar que coibiria a difusão das notícias falsas, por meio de sanções pesadas (incluindo a possibilidade de anulação das próprias eleições), mas, no fim, o Tribunal não teve habilidade para investigar, nem competência para controlar e nem coragem para aplicar as penalidades prometidas.
Se a lei não consegue se impor, qual seria a solução para esse problema? Como evitar isso nas próximas eleições? Esperar pela conscientização da população seria muita ingenuidade, já que boa parte da própria população se sujeitou a fazer parte do jogo sujo.
'Particularmente, acredito que a solução passa necessariamente pela pressão pública sobre as empresas de tecnologia (mais especificamente, sobre o Facebook, dono e responsável pelo WhatsApp), para que sejam aplicadas medidas de controle de notícias falsas dentro da própria arquitetura do aplicativo. Se a pressão da opinião pública global surtiu efeito no Facebook após as eleições norte-americanas de 2016, então acho que valeria a pena pressionar por mudanças no WhatsApp. Entretanto, para isso, é preciso nos darmos conta do poder enorme e grave que as articulações coordenadas dos grupos de WhatsApp tiveram nessas eleições